João Bosco abre a porta da esperança equilibrista em álbum com evocações precisas de João Gilberto e Tom Jobim

  • 21/05/2024
(Foto: Reprodução)
Artista revolve o cio da terra indígena em ‘Boca cheia de frutas’, disco repleto de tributos a Aldir Blanc, parceiro fundamental do compositor mineiro. Capa do álbum ‘Boca cheia de frutas’, de João Bosco Victor Correa Resenha de álbum Título: Boca cheia de frutas Artista: João Bosco Edição: MP,B Discos / Som Livre Cotação: ★ ★ ★ ★ ♪ Boca cheia de frutas é o primeiro álbum de músicas inéditas de João Bosco em sete anos e também o primeiro no gênero sem a presença física de Aldir Blanc (2 de setembro de 1946 – 4 de maio de 2020), fundamental parceiro letrista com quem o compositor mineiro formou dupla referencial na MPB dos anos 1970. E esse último dado já diz muito sobre o disco. Aviso aos navegantes: a audição do álbum pode soar como anticlímax para quem esperar ouvir música tão estupenda e instantaneamente antológica quanto O canto da terra por um fio (2023), mas o disco é ótimo. Parceria de João com o filho Francisco Bosco, a composição afro-indígena O canto da terra por um fio escarrou o sangue da nação asfixiada em single arranjado por Jaques Morelenbaum e lançado em dezembro, quando o álbum Boca cheia de frutas era somente uma ideia na mente do artista. Concebido por João Bosco com Francisco Bosco, o álbum foi efetivamente gravado de 18 de março a 2 de abril no estúdio Visom Digital, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), e entrou em rotação nos aplicativos de áudio desde 10 de maio com a música O canto da terra por um fio e mais 10 faixas inéditas. E, por mais que a escuta do disco possa soar como anticlímax diante do single de 2023, isso jamais anula o fato de que há belezas e delícias em Boca cheia de frutas. João Bosco jamais se repetiu ao longo de discografia iniciada em 1972. Cada álbum contou uma história e trouxe um conceito. Sucessor de Mano que zuera (2017), Boca cheia de frutas expõe dissonâncias do Brasil sem deixar de abrir porta para entrar uma esperança equilibrista capaz de diluir a distopia nacional. A sonoridade de Boca cheia de frutas é mais uma vez calcada no violão singular de Bosco, cujo toque do instrumento parece abarcar um mundo que extrapola as fronteiras do Brasil, mas o fato de os arranjos terem sido confiados ao pianista Cristovão Bastos projetou outros instrumentos e injetou certa calmaria em várias faixas do álbum, formatado com produção musical de João Bosco. Tal serenidade é exemplificada pelo arranjo de Dias que são assim (João Bosco e Francisco Bosco), faixa levada na cadência de valsa-fox com direito a cordas. Há até atmosfera jazzy em certas passagens de Vir-a-ser (João Bosco e Francisco Bosco), canção sobre uma canção em vias de ser gerada, mas ainda não criada. A faixa parece aclimatada para o canto escuro e esfumaçado de uma boate, tal como E aí?, música inédita de Bosco com o bardo carioca Aldir Blanc. Com música composta por Bosco a partir de letra inédita revelada em 2013 em biografia de Aldir, E aí? virou samba-canção de tons plácidos incrementado com assovio de Bosco – referência a gravações de outras parcerias da dupla – e com citação de outro samba-canção, Tive sim (Cartola, 1968), pelo piano de Cristovão Bastos, em homenagem a Aldir, que adorava a música e pedia que João o acompanhasse em Tive sim nas rodinhas de violão. Ainda assim, E aí? ficou sem a cara de Aldir Blanc, também celebrado nominalmente pelo parceiro em Gurufim (João Bosco e Francisco Bosco), samba formatado somente (e isso é muito) com a voz e o violão de Bosco, intérprete de letra repleta de alusões ao cancioneiro da dupla. João Bosco lança o álbum ‘Boca cheia de frutas’ com 11 faixas, incluindo regravação de ‘O cio da terra’ (1977) Victor Correa / Divulgação Ironicamente, o espírito inquieto de Aldir Blanc parece ter baixado mais em parceria de João com o sempre certeiro Francisco Bosco, Dinossauros da Candelária, samba cheio de ginga, eletricidade e alma carioca. E Aldir está lá não somente porque o verso “Chovia meretriz e lady” alude à letra de Dois mil e índio (João Bosco e Aldir Blanc, 1984), samba da dupla de bambas. Destaque da inédita safra autoral do álbum Boca cheia de frutas, o samba Dinossauros da Candelária é a faixa que mais lembra a zueira dos manos Bosco e Aldir na década de 1970. A letra inclui referências a Martinho da Vila e a Zeca Pagodinho, cogitados para parceria não concretizada no samba, e também à marchinha Quebra, quebra gabiroba (Plínio Brito, 1930). E por falar em samba, Bosco consegue recriar com beleza e precisão – mas sem cair na imitação – o universo da música de João Gilberto (1931 – 2019) em Samba sonhado, mais uma parceria com Francisco Bosco. A faixa impressiona na mesma medida em que soa espantosa a habilidade de João de reproduzir, no tema instrumental Sobre Tom (João Bosco), a ambiência do primeiro álbum de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), The composer of desafinado plays (1963). “Como no disco de Tom, o violão faz a parte harmônica, o piano faz a melodia, o baixo é acústico, o trombone é aquele, a flauta é aquela”, enumera o artista, detalhando a gênese da faixa em que a flautista Andrea Ernest Dias e o trombonista Everson Moraes se unem a Bosco e ao trio-base formado por Cristovão Bastos (piano), Guto Wirtti (baixo) e Kiko Freitas (bateria). Como nem tudo é bossa e leveza no Brasil de 2024, o disco se aprofunda em temas mais densos. Parceria de João Bosco com Roque Ferreira, Dandara revolve o cio da terra na abertura deste disco que traz à tona raízes indígenas e africanas embutidas no brutalizado solo do Brasil. Outra parceria de João com Francisco Bosco, Buraco puxa o álbum para o chão amazônico, evocando o espírito do indígena conhecido entre antropólogos como “Índio do Buraco” ou “Índio Tanaru”, encontrado morto em buraco em 2022, em Rondônia, onde viveu isolado, recusando qualquer contato com outro ser humano. Reforçando o elo do álbum com o solo nacional, Bosco dá voz à música O cio da terra (Milton Nascimento e Chico Buarque, 1977) em faixa emendada com a música-título Boca cheia de frutas (João Bosco e Francisco Bosco), composta por canto yanomani (“waruku waruku waruku këëi moramakī waruku waruku waruku këëi”) em que, entre sons de pássaros e vozes de crianças, João Bosco repete o título do álbum como mantra, abrindo a porta para a esperança equilibrista.

FONTE: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2024/05/21/joao-bosco-abre-a-porta-da-esperanca-equilibrista-em-album-com-evocacoes-precisas-de-joao-gilberto-e-tom-jobim.ghtml


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